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A peça nunca antes vista ou 'crônica das situações anunciadas'

*Por Mariana Barsted



Estamos há quatro meses ainda na estreia desta peça, nunca antes vista por nenhum público. Estreamos no dia 16 de março e tudo indica que a temporada vai ser longa.


Precisaram fazer a troca das personagens principais desta trama mas, infelizmente, não foi decisão do nosso elenco. É bom lembrar que a temporada vai ser longa, pois os diretores ainda não se decidiram em que arena permaneceremos, se o elenco chegará junto ao final e se restará público para esse espetáculo.


Esqueci de contar que a nossa peça é uma tragédia, poderíamos chamar de “tragédia brasileira”, onde tudo pode acontecer, e com fortes pitadas de terror.

A peça traz algumas referências cinematográficas tais como “Alien, o Oitavo Passageiro”, dirigido pelo Ridley Scott (1979); “O Exterminador do futuro”, dirigido pelo James Cameron (1984); “Os Outros”, escrito e dirigido pelo Alejandro Amenábar (2001); “O homem invisível”, escrito e dirigido por Leigh Whannel (2020), e várias outras referências que misturam ficção com realidade. Tenho certeza que as espectadoras e espectadores se lembrarão de momentos desses filmes.


Tenho certeza, também, que muitas pessoas gostariam de sair e assistir a essa peça. No entanto, tem-se recomendado, nesses tempos, que fiquemos em casa, pois o público ansioso, que tem ocupado nossa arena porque não consegue esperar (e que querem ser os primeiros em tudo!) não está dando espaço para o público que, às vezes até, precisa chegar.


Resolvemos estrear também na modalidade virtual, afinal, a audiência está tão acostumada com o mundo virtual que muitos desafios estão surgindo e sendo superados pensando nessa nova modalidade.


Os menos ansiosos, os que estão em casa, têm se distraído com outros passatempos que não a nossa tão famosa peça. Sim, esses passatempos sempre existiram, mas ainda não tínhamos percebido suas intensidades, que prendem a nossa atenção. Ops, nossa não, a atenção, principalmente das mulheres.


Muitas mulheres relataram que os passatempos as estão sobrecarregando. O cuidado com as(os) filhas(os), a ajuda nas tarefas escolares na modalidade online, o passatempo infindável com as tarefas domésticas e a divisão com o passatempo office home.

Muitas não tiveram com quem compartilhar tais momentos e estiveram “solo” nestas atividades. Muitas não conseguiram lidar com essa “recreação” caseira, se viram desafiadas a lidarem com a incapacidade de prever, ou ter qualquer controle sobre o futuro, ou sobre qualquer coisa! O futuro das famílias, a manutenção dos trabalhos, o medo do concreto que é a ficção em que a humanidade se encontra.


O enredo desta peça nos beliscou (pelo menos a alguns) sobre a explícita realidade das desigualdades: da desigualdade social, da desigualdade racial, da desigualdade de gênero, só para não listar muitas. Essa é a música de fundo: batimentos de coração em stacatto, com notas articuladas fora da tessitura e melodia atonal.


Há momentos bem fortes, que envolvem temor, tristeza, desespero, com violência e mortes: a pandemia silenciosa. As personagens são mulheres e muitas mulheres morrem em cena. Dados apontam que houve uma elevação de 46,2% nos índices de feminicídio só em SP e de 400% no Mato Grosso do Sul!! Outras muitas sofrem diversos tipos de violência, tudo dentro de casa, um aumento aproximado de 50% dos casos. Mesmo em tempos “normais”, em 2018, quase 70% das mulheres mortas no país eram negras. O cenário é um interior de uma casa, lar onde estão confinadas com seus agressores.


Há personagens idosas e idosos também. O cenário é parecido: o interior de uma casa. Silêncio. Dados estatísticos do Disque 100 apontam que os casos de violência patrimonial contra a pessoa idosa aumentam, começando antes dessa estreia, mas se intensificando ao longo dela. Mais cenas de suspense e terror vão surgindo em cada ato.


Neste mesmo enredo e cenário temos personagens infantis, meninas e meninos. No Brasil, 90% dos casos de violência sexual e outros tipos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem no ambiente familiar e esse risco aumento nesta temporada, pois estão convivendo mais diretamente com seus agressores. No Brasil, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, os índices de violência sexual, praticada, na maior parte das vezes, no âmbito doméstico indica que 75,9% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com o agressor (marido, pai, padrasto, avô, tio, irmão).


Durante todo o espetáculo há projeções, em painéis que se alternam na cor preta e na cor branca, com imagens de cura. Cada espectador se afeta de uma forma, sua forma de estar ali. Uns revelam fragilidade e falência da crença pela ética e pelos direitos, outros assistem com desdém, acreditando que tudo está em suas mãos.

Entre cenas, como um ritual, um rufar de panelas ressoa, trazida pelos atores coadjuvantes, como o coro das tragédias gregas. A cada passagem de cena, que termina sempre com o chegar das noites. O cenário é o interior de uma casa, aqui pensamos no "O Anjo Exterminador", dirigido por Luis Buñuel, a porta permanece aberta mas grande parte do elenco não consegue atravessá-la.


Ao final deste espetáculo, quando a cortina se fecha, parte da plateia continua sentada, talvez impactada. Outra parte, se levanta e começa a sair, cautelosamente, ainda sem entender a tudo o que assistiu, sem saber se foi uma tragédia, suspense ou terror, se conseguiram sobreviver a toda essa experiência. Mas, há também os que se levantam, dizem que tudo o que assistiram foi um tosco espetáculo, longe da realidade ou de algo que possam até mesmo imaginar ou se afetar.


A temporada, ao que tudo indica, se prolongará. Estamos sem diretor, se alternam e não se fixam nesta peça, o teatro está interditado, o público assustado, o elenco segue sem saber se ali permanecerá, mas estamos no Brasil.


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* Mariana Barsted é advogada e coordenadora de projetos na CEPIA. É membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas (IBPC).


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