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Frankfurt: quando os dias se transformam em meses

* Por Sheila Stiller



Já perdi a conta de quantos dias que estou em casa. No início da quarentena, eu me sentia até feliz por estar em casa, por ter uma casa, tempo para minha família e estar saudável. Depois que dias se transformaram em semanas e semanas em meses, o sentimento de uma certa felicidade e a sensação de estar protegida se transformaram em um vazio no peito e muitas vezes um engolir de lágrimas.


Pois ando me perguntando se há proteção de verdade. Ainda que eu fique em casa, que use máscara, vejo que há muito movimento lá fora, muita gente que prefere arriscar pegar o vírus a viver sem sair. A possibilidade de contágio pode ocorrer em uma ida ao mercado, pois mesmo com máscaras, nós sempre tocamos em alguma coisa e em outra que contamina aqui e lá.


No caixa está escrito que tenho que pagar com cartão. Daí, eu tiro a carteira da bolsa, com as mãos já contaminadas. Ainda que use o álcool gel que está dentro da bolsa, na hora de abri-la, eu contamino o zíper. Pego o cartão de crédito da carteira, digito a senha e já contaminei os dedos. Ao retorná-lo à carteira, ela está suja. Chego em casa, lavo as mãos e, meia hora depois, meu filho precisa de dinheiro para comprar um lanche na escola, e o que eu pego com as minhas mãos limpas? A carteira contaminada!


Também o fato do meu filho retornar à escola me apreende. Ninguém que tente me convencer que um adolescente lava suas mãos no mínimo cinco vezes, que não pega no celular com as mãos sujas e que conversa com o amigo mantendo dois metros de distância.

Na escola só usam máscara no enorme pátio de recreação. Dentro da sala, onde a distância entre alunos e professor é muito menor, ninguém pode usar máscara. Qual é a lógica?


Minha sogra, de 93 anos, anda saracoteando por aí. Meu marido já discutiu tanto com ela sobre isso, que resolveu parar de reclamar. Ela argumenta que não é uma criança, que sabe o que faz. E ele se questiona quanto tempo de vida ela ainda teria, para perder seus últimos capítulos presa em um apartamento. A mesma vivenciou a guerra aqui na Alemanha, fugiu dos russos e quase não fala do passado. Um belo dia tomamos juntas uma garrafa inteira de vinho e finalmente ela me contou coisas que nem meu esposo sabia.


Claro que os alemães tiveram culpa nesse guerra medonha, mas não as crianças e adolescentes. Minha sogra era uma jovem menina e teve que aprender a ser só e a não confiar em ninguém. Até hoje ela guarda esse misto de desconfiança e solidão.


O problema do nazismo e do fascismo é que eles encantam os desencantados. Os que preferem buscar um culpado para escapar da própria incapacidade de encontrar sentido em suas existências.


Voltando aos dias atuais, não mais acredito que estou protegida e estou consciente de que a felicidade é composta de momentos e hormônios, Tenho medo de sair, de quebrar essa reclusão, pois não sou responsável somente pela minha vida, nem desejo macular minhas mãos com sangue alheio.


Semana passada eu fui ao médico, no centro da cidade. Passei de carro por muitas ruas para chegar lá e eu me admirei com a quantidade de prédios que foram ou estão sendo construídos. Cheguei até me perguntar quando foi que tudo isso tinha acontecido. Teria eu hibernado tanto tempo em minha caverna?


Mas devo confessar que me surpreendi ao ver tantas pessoas nas ruas. Com que cara vou dizer aos meus filhos que fiquem em casa pois a polícia anda multando todo mundo que vaga pela cidade? Por outro lado, o número de infectados aqui na Alemanha diminuiu bastante, as mortes também não foram tantas, apesar de que qualquer morte é uma perda irreparável. Mesmo assim, acho que nunca mais vou sair de casa sem me sentir temerosa em me contaminar ou contagiar alguém.


Nossos hábitos mudaram com esse vírus, nós nos tornamos menos materialistas pois começamos a perceber que nossos caros sapatos e carros não nos levam a lugar algum se não temos para onde ir. Nossas roupas foram trocadas por pijamas e moletons. A última vez que vesti uma calça, tive a sensação de estar presa em uma segunda e mais apertada pele, uma vez que ultimamente engordei e porque o meu pijama é muito mais fofinho.


Esse tema de engordar também se tornou um problema. Cozinhamos em casa e comemos mais agora. Dormimos muito mais tarde, já que não há motivo especial para acordar. Portanto comemos também em horários esquisitos. Já tomei café da manhã ao meio dia e almocei às seis da tarde. Já dá para imaginar a que horas jantamos...


A minha filha completará no dia sete de junho 15 anos e nós passamos um enorme tempo juntando dinheiro para essa festa. Temos toda a decoração, o local reservado e até enviamos aos convidados um cartão digital para salvar essa data tão querida. Porém, há algumas semanas, ligaram avisando que não podiam mais alugar o salão por causa do COVID-19. No primeiro momento ficamos chocados. O sonho de anos de minha filha se desfez em segundos, mas ela reagiu melhor do que eu esperava e disse que entendia. Seria realmente difícil festejar uma vida, enquanto tantos perdem as suas.


Na ruas percebo que os carros não andam tão rápido. As pessoas se locomovem sem pressa alguma. Ninguém precisa correr para lá e para cá. Quanto mais devagar a vida, mais tempo temos para viver. Nos supermercados as pessoas se evitam, compram o que podem e saem sem se enxergar.


Houve um tempo que faltava todo tipo de artigo básico. Desde janeiro, minha sogra vinha falando para comprar pasta e enlatados a mais. Claro que eu não fiz isso e quase ficamos sem esses mantimentos. Ela armazenou tudo antes -- ela já tinha passado por uma guerra. A minha era a primeira. Papel higiênico sumiu do mapa. A Chanceler teve que fazer um apelo para a população não jogar outro tipo de papel nos vasos sanitários pois muita gente, no desespero, havia comprado lencinhos descartáveis e papel de cozinha que não se desfazem e entopem os canos.


Salões de beleza também fecharam e tive a impressão que o Beatles ressucitaram, tantos eram os cabeludos que andavam por aqui. Eu mesma tive que cortar o cabelo do meu esposo, rezando para não fazer um caminho de rato, como dizia a minha mãe. No final das contas, o cabelo ficou até bonitinho e agora o meu marido não quer mais ir à barbearia para economizar dinheiro, o que é também um tema bem difícil em nossa sociedade atual.


Se me perguntam hoje como eu vejo esse momento que estamos vivendo, eu nem sei mais o que falar. Meus pensamentos andam meio adormecidos. Parece que o mundo me dopou, que estou vivendo em um filme e nem paguei para entrar no cinema.


Há tempos via tudo isso como uma chance de mudança, de solidariedade, de estarmos juntos separados, afinal, toda a humanidade estava no mesmo barco. Iríamos nadar juntos e os melhores nadadores levariam os mais fracos nas costas. Eu não sabia que esse barco era o navio Titanic: os mais poderosos estão fugindo com os botes, enquanto a maioria se afoga no mar congelado.


Por isso não saio de minha cabine. Assim tenho a sensação de que nada lá fora está acontecendo e quando acordar amanhã, tudo não terá passado de um grande pesadelo. Estaremos a salvos e felizes em um mundo melhor.



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* Sheila Stiller nasceu em 1973, em Salvador, Bahia e mora há 25 anos na Alemanha. Estudou Letras na Universidade Johannes Gutenberg, em Mainz, e trabalha na área de aviação desde 1999. A autora começou a escrever durante sua infância e resolveu começar a postar seus textos em 2016, na página de Facebook intitulada Cidadã do Mundo (https://www.facebook.com/contosvssonhos). Preocupada com a integração das brasileiras na Alemanha, Stiller fundou o grupo Papo Aberto em Frankfurt, com a finalidade de empoderar e incentivar as mulheres no país. Casada há 18 anos, tem dois filhos provenientes desta relação. Seu maior sonho é criar um café literário brasileiro em sua cidade, para mostrar aos alemães as riquezas de sua terra natal.




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