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O dia em que quase perdemos um sorriso

* Por Lívia Frossard


Após uma semana de confinamento mandatório na França, seguíamos nos mantendo ativos e fortes, redescobrindo jogos de tabuleiro. No entanto, em um segundo, tudo mudou.


Eu estava na cozinha enquanto meu marido e filhas jogavam palavras cruzadas. O que parecia ser um jogo maçante, em nossa casa tornou-se muito competitivo. Uma palavra com muitos pontos gera danças comemorativas intensas. E assim, foi nesse instante que no sábado, em meio a uma celebração, fez-se um silêncio inexplicável.






Em dois passos, cheguei até a sala e vi minha filha com a boca ensanguentada. Ela havia escorregado e caíra com o rosto diretamente no chão, quebrando os dentes da frente. Seu olhar de dor e medo me quebraram por dentro.


Enquanto aplicava gelo e tentava acalmá-la assegurando-a que haveria uma solução, minha mente se lembrava que os consultórios dentários estavam todos fechados e seria impossível levá-la a uma emergência.


Na próxima hora e meia, havíamos consultado o telefone para emergências na França, três dentistas em Paris e no oeste da cidade, quatro dentistas conhecidos de amigos, dois hospitais com urgência dentária, uma dentista amiga no Brasil e um primo querido, dentista da família. Todos foram unânimes em dizer para não ir aos hospitais e lamentavam não poder atendê-la pois não tinham equipamento adequado para recebê-la em segurança.


Enquanto quebrávamos nossa cabeça conversando com os profissionais, vi o sorriso da minha filha ir embora. Aos 14 anos, obrigada a ficar presa em casa e assistindo aulas online, auxiliadas por câmeras que focalizam com closes os rostos dos alunos, perder os incisivos é desalentador. Ao final da tarde, desistimos e resolvemos pensar como poderíamos fazer para manter o ânimo dela.





Fomos dormir bastante inquietos e acordamos tentando pensar que, no meio desse turbilhão de acontecimentos assombrosos, esse problema não era tão grave. Fora a dor que diminuíra, não havia mais o que poderíamos fazer.


Até que o telefone tocou e um dentista, aqui perto de casa, nos perguntou se poderíamos levar a Elisa para que a examinasse em uma hora. Esse dentista, do qual nunca ouvimos falar, recebeu a foto dela via outro colega, que também não fazia parte dos nossos contatos.


O que acontecera é que uma corrente de solidariedade se formara. A foto dos dentes da minha filha circulava entre dentistas da minha região, a fim de descobrir quem poderia atendê-la com, no mínimo, luvas e máscaras.






Deu-se início, então, a uma verdadeira operação de guerra. Meu marido recebeu instruções de deixá-la na porta do consultório. Ela teria que entrar sozinha, deixar sapatos e casacos numa antessala, colocar avental descartável e finalmente entrar no consultório.


Lá a esperavam o dentista e sua assistente, paramentados como em um filme de ficção científica. Minha filha mal viu os seus olhos. Em poucos minutos, eles colaram um dos dentes mais afetados e o outro ficou apenas faltando um pedacinho.


Elisa foi encaminhada até a calçada onde o pai a aguardava. Meu marido rapidamente sacou o talão de cheques, pensando que custaria um valor exorbitante. O dentista pediu apenas a carta da Secu, o equivalente no Brasil a uma carteirinha do SUS. Assegurou que deixássemos que o seguro cuidasse disso.


Eu jamais vou descobrir os caminhos que a foto da minha filha passou até chegar a esse especialista em implantes dentários que se dispôs a nos ajudar. Só sei que essa rede de solidariedade me deixou esperançosa de que sairemos dessa situação mais unidos do que nunca.


Minha filha chegou em casa com a boca ainda muito inchada e com dores. Pediu para descansar. Acordou uma hora depois, foi até à sala e sorriu.


***


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Lívia Frossard graduou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e é mestre em comunicação social (publicidade/marketing) pela Boston University (EUA). Cursou MBA em Marketing pelo Ibmec-RJ. Trabalhou como repórter no Jornal do Brasil e foi supervisora de publicações na Esso Brasileira de Petróleo. Na área de marketing, atuou na Fundação Roberto Marinho, e nas startups Univir e Invent. Foi voluntária do Center for Responsible Business da Haas Business School da UC Berkeley (EUA), onde cursou a disciplina de Responsabilidade Social Corporativa. Foi gerente de marketing da Report Comunicação e coordenadora de comunicação na Embraco (Whirlpool SA). Viveu na China por cinco anos e mora há dois anos em Saint Germain-en-Laye, nos arredores em Paris, onde é lecturer na escola de negócios ESLSCA, além de atuar como líder do comitê de empreendedorismo do Grupo Mulheres do Brasil (Paris).



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